Setembro\l990 Revisado em 04/03/2010, vinte anos depois.
Já fora um homem até bem apessoado. Agora seu corpo encurvado, exibia corcunda acentuada. Sombrio, devastado pelos anos de prisão e vícios acumulados. Olhos pequenos e vermelhos, como de um rato. Moviam-se incessantemente. Rugas escavavam vales, vincando seu rosto envelhecido cuja pele flácida caia, atraída pela gravidade.
Era conhecido como principal delator do Chefe de Disciplina. Ano de l973, ditadura plena no país. O espancamento dos presos com canos de ferro na Penitenciária do Estado fazia parte do alinhamento político. Lauro distribuía alimentação aos presos que estavam de castigo na cela forte.
Não conheci nenhuma cela de prisão que fosse “fraca”. Todas eram fortíssimas. Mas aquelas eram especialmente fortes. Chapas de aço na porta e janela. O ar entrava por milimétricos furos na chapa da janela. O chão era de caquinhos de cerâmica. Paredes úmidas e pegajosas. Nada além da privada, do colchão e do sentenciado ali, mergulhado na mais negra solidão.
Não seria apenas estar preso. O verbo nunca foi de transição e sim de definição. A idéia era transformar a pessoa ali submetida, em um ser aprisionável. O método era isolar e privar de qualquer conforto. Proibido fumar, ler ou conversar. Uma bituca apreendida acrescentava mais 30 dias à sanção disciplinar. Nem bíblia era permitido. A porta só abria para os brutamontes do choque da Casa revistassem a cela. Banho, barba e cabelo às quintas-feiras. Abriam uma cela de cada vez; saíamos nus passando por corredor de homens enormes armados de canos de ferro.
Estávamos ali, cerca de uma centena de presidiários, inteiramente à mercê do Lauro, do Choque e do Marcelino, funcionário da cela forte. Eles sentiam-se na obrigação de nos humilhar e sacanear sempre que podiam.
Aceitávamos silenciosamente. Nosso olhar era de observação, estudávamos os inimigos. Mas carregava toda a fúria e revolta de nossa alma. Ódios trocados, duelos de olhos que se batiam como espadas em fogo. Resistir sem sermos quebrados, era nosso esforço. Chegaria nossa vez.
Vivíamos à noite, quanto Lauro e os guardas dormiam e dormíamos de dia, quando eles nos vigiavam. Inventávamos jogos e contávamos histórias pelo encanamento da privada, nosso nauseabundo "telefone".
Amarrávamos linha a um sabonete e arremessávamos pelo encanamento da privada. O companheiro dos andares acima, fazia o mesmo com uma linha mais forte. Balançávamos as linhas até que se embaraçassem. Então puxávamos trazendo a linha do parceiro em regime comum.
Por ali transportávamos cigarros, fósforos, café, bang bang e outras coisas. Pela manhã tudo era devolvido, antes da eletrizante visita dos "amigos" do Choque. Alguém colocava o rádio na privada e ouvíamos música pela noite adentro.
Guardávamos cigarros e fósforos entre as nádegas. Os guardas nos marcavam sob pressão. Possuíam prazer mórbido de nos pegar em infração disciplinar para aumentar nossa estadia naquele inferno. Não bastavam os longos anos de prisão que cada um de nós tinha a cumprir.
Carlão nem ligava mais. Estava condenado a mais de cinco anos de cela forte. Matara três companheiros e ferira uma meia dúzia de uma vez só. Fora outros que matava sempre que tinha chance. O que seriam meses para quem já estava ali a anos e tinha anos para ficar?
Lauro ficava indignado. Não aceitava que na cela-forte “dele”, fôssemos surpreendidos com cigarros, papel, caneta e até raramente, maconha. O Chefe de Disciplina exigia explicações dele. O sujeito nos denunciava, contando como fazíamos o transporte e como nos comunicávamos com os companheiros do regime comum.
Um canalha. À primeira oportunidade, seria assassinado. Carlão o olhava quase babando de vontade de beber seu sangue. Mas o sujeito era esperto. Quando nos soltavam, ele se trancava em sua cela.
O Cirane não admitia. Os presos em regime disciplinar não podiam continuar contrabandeando coisas que ele considerava regalias. Foi Lauro quem surgiu com a idéia de mudar o encanamento das celas fortes. Caixas coletoras só para as celas disciplinares. Era dispendioso. Mas para nos sacanear, gastos não seriam considerados. Desenhou, montou o orçamento e se propôs a concretizar o projeto.
O que ganharia com isso? Continuaria gozando de regalias: ficar solto à noite; alimentação melhor; chave da porta de sua cela na sua mão; poder ir e vir nos pavilhões; espaço e liberdade. Era uma identificação. Queria diferenciação, ser alguém no contexto da prisão. Essas eram as motivações conhecidas e declaradas.
Em prazo recorde, concluiu o projeto. Tornou impossível a comunicação com o mundo exterior à nossas celas. Por trás, uma motivação oculta, de caráter econômico. Dai para frente, se quiséssemos fumar, ler, escrever, receber ou dar algum recado, era preciso pagar um imposto super abusivo para o nosso “caro amigo” Lauro.
Nossos amigos nos prestavam assistência. Mais da metade ficava com nosso algoz, para que chegasse até nós. E carecíamos ser cordiais, gentis e sorrir para o safado. Caso contrário, nem pagando alto preço, recebíamos nada.
Durante anos, esse pilantra nos explorou o quanto quis. Ainda recebia rasgados elogios pelo seu comportamento, da Diretoria da Casa. Culminaram em premiá-lo com a liberdade. A única dúvida é se lá fora ele conseguiu todo espaço e liberdade que possuía na prisão.
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